A cultura caipira perde Tinoco
Aquele dia era como se o caboclo soubesse que a marvada o esperava num canto qualquer, com o mesmo espírito estraga-prazeres que teve com o amigo Chico Mineiro naquela festa boa lá pelo sertão de Goiás. A bicha era tinhosa. Depois de Chico havia sido o mano Tonico. Ele não merecia aquela rasteira da morte, tombo mais besta na escada do prédio onde morava, em 1994. Só tinha 77 anos, um sorriso de moleque e uma doçura de mãe.
A voz de Tinoco nunca mais foi a mesma pela simples razão de que não existia sozinha. Sem Tonico, Tinoco tinha meia voz. Podia ser Tião Carreiro a seu lado que não saía igual. Sem Tinoco, Tonico se sentiria da mesma forma. Antes de serem grandes, ainda quando eram João e José, o povo de Botucatu, no interior de São Paulo, dizia que os dois juntos tinham não duas, mas uma voz só. Ninguém conseguia explicar como aquilo acontecia.
Já que o trem da última viagem lhe dava sinais, que fosse em grande estilo. Tinoco, 91 anos, entrou como criança no Teatro Franco Zampari, em São Paulo, na quarta-feira, para gravar um especial do programa Viola Minha Viola, da TV Cultura, dedicado a ele por Inezita Barroso. Ali, parecia indestrutível. Sorria de tudo e fazia piadas com uma agilidade de pensamento que ia juntando os risos da plateia uns aos outros, tirada após tirada. As duplas chegavam para cantar suas músicas e ele, de seu canto, acompanhava todas de cor. Inezita percebeu que sua mão tremia e achou melhor pedir à produção que não o deixassem segurar o microfone. Às vezes o peito cansava, e ele seguia em frente. Se fosse contar a real de seus últimos tempos, seria um rio de lágrimas. Há três anos, decidiu rifar seu Gol 98 para pagar o tratamento que sua mulher Nadir fazia para se livrar de um câncer. A tarde era de festa, e foi como um mestre de cerimônias que Tinoco resolveu se despedir. "Gente, meu aniversário é hoje. Vamos cantar parabéns pra mim?" Aniversário coisa nenhuma. A data certa de seu nascimento é 19 de novembro de 1920, mas, vai querer entender, Tinoco decidiu pregar a peça. E todo mundo caiu.
As duplas entravam no estúdio e Tinoco inflava de orgulho. Duo Glacial, Divino e Donizeti, Ivan Lobo e Vitor Cesar, Mazinho Quevedo, todos cantando peças de um monumento erguido pelos dois irmãos fundadores de um caipirismo fantástico cantado a duas vozes, uma cultura de viola e de comportamento, de causos em verso e prosa. Em mais de 60 anos de carreira, Tonico e Tinoco venderam 150 milhões de discos, gravaram 83 álbuns, mais de mil músicas e subiram ao palco juntos por 40 mil vezes. Se ganhasse um mísero real por cada disco vendido, seus últimos dias teriam sido bem diferentes. Mas ali, nada de esbravejar contra o Ecad. Tinoco queria festa.
Aqui pelo sertão de São Paulo, era tudo cururu antes de Tonico e Tinoco. 'Sertão de São Paulo' já é uma heresia de dar agulhada no peito de caboclo paulista. "E quem disse que São Paulo tem sertão? Sertão é no nordeste", diz Inezita, dizia Tinoco. Os irmãos preferiam Caipira, assim mesmo, escrito em maiúscula e dito sem abaixar a voz. O cururu que encontraram aqui era o ritmo dos violeiros do interior, uma música de desafio entoada por um cantador e um violeiro. Com aquelas vozes que mais pareciam uma, não teve jeito. Firmou-se a moda de viola. A partir dali, ganhava força o formato 'dupla caipira' de primeira e segunda voz. E aí, a porteira se abriu.
Como fez Luiz Gonzaga com seu sertão, Tonico e Tinoco passavam a representar um outro homem do campo que só ganhou força quando as gravadoras viram que eles eram muitos. De cada tijolo, fizeram um prédio. Chico Mineiro, Tristeza do Jeca, Beijinho Doce, Paraguaia, Luar do Sertão, A Moda da Mula Preta, Chico Mulato, Estrada da Vida, João Carreiro.
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