Matanza: Odiosa Natureza Humana (Deckdisc)
Se a trajetória do Matanza é pautada pelo inesperado, chegar ao quarto álbum com o vigor de um estreante é uma de suas mais louváveis características. Ou alguém aí em sã consciência apostaria na longevidade de um grupo fazendo música pesada, misturando country com hardcore e heavy metal, com um vocalista cabeludo de dois metros de altura contando o dia-a-dia de figuras inefáveis e à margem de tudo e todos? Difícil não só pelo tal “conjunto da obra”, mas pela inerente dificuldade de ter o que contar/tocar sem se tornar repetitivo num campo pautado por limites criados de antemão.
Mas é aí que entra o gênio. Donida, o sujeito que concebe praticamente todas as letras e músicas, o visual e a temática única do Matanza, se recusa a sair de casa e, em compensação, volta a criar um punhado de histórias excepcionais, sem fugir do “jeito Matanza” de ser. O que se supunha de repertório limitado se converte numa amplitude de mar aberto. Uma coisa que realça logo na primeira audição desse disco é um surpreendente flerte com a canção pop, no sentido de colar no ouvido do menos entendedor com incrível rapidez. É o que acontece na ótima “Saco Cheio e Mau Humor”, cujo título é puro Matanza; em “Amigo Nenhum” e na saltitante “Tudo Errado”, garantia de pista lotada em qualquer discotecagem rock que se preze. E isso sem entrar no sotaque country de “Carvão, Enxofre & Salitre” e “Conforme Disseram as Vozes”. Esta última descreve com riqueza literária o que se passa na cabeça de destrutivos anti-heróis psicopatas que inspiram cineastas em Hollywood.
Se prefere ficar trancafiado em casa, o Gênio precisa de alguém que mostre sua arte. E aí – sabemos todos – Donida não poderia ter encontrado personagem melhor que Jimmy. Ninguém pronunciaria “amigo nenhum” na música de mesmo título como ele faz: a rascância e a rouquidão da voz que simula o personagem descrito na música são de uma interpretação shakespeariana. Poucos frontman na história do rock encarnam tão bem os personagens descritos nas letras. Quando diz que vai ficar “de saco cheio e de mau humor”, ou que não tem “mesmo a menor paciência pra isso”, dá pra imaginar o grandalhão fulo da vida, emburrado, prestes a partir pra cima do primeiro incauto. E quando ele descreve o “mundo horrível”, com “gente desprezível” em “Em Respeito ao Vício”, incorpora o gênio criador numa simbiose osmótica.
Não é á toa que a palavra misantropia aparece no refrão da faixa-título: foi o misantropo Donida quem a escolheu. Não pense que a fábula do forasteiro do velho oeste que volta à cidade natal da excelente “Amigo Nenhum” não guarda semelhança com o autor. E nem que a figura que “passa as férias no bar” em “Melhor Sem Você” é apenas fruto da genialidade de um compositor maduro. Tudo isso, de certa forma, faz parte do “way of life” do sujeito. Ele sabe que “quem nasceu pra ser solitário precisa de muito tempo sozinho”. Mas também não leve tudo tão a sério a ponto de lhe imputar a responsabilidade pela destruição do shopping de “Conforme Disseram as Vozes” ou as façanhas de “Carvão, Enxofre & Salitre”. Não se pode fazer da genialidade criativa um ônus para o criador.
Essa história toda, entretanto, não é novidade na trajetória do Matanza. Donida já cometeu verdadeiras peças literárias em todos os três álbuns anteriores. Como não lembrar histórias contadas em “Ela Roubou Meu Caminhão”, na impagável “Pé Na Porta, Soco na Cara” ou em “Eu Não Gosto de Ninguém”? Ocorre que aqui ele se supera, como compositor e, sobretudo, como um peculiar contador de histórias rock’n’roll. Não foi ao acaso que o quarteto gravou tudo em três dias, no talo, quase num take só. E, com ele, Jimmy é, mais que em outras fases, mistura de criador e criatura, numa via de mão dupla que revela uma unidade indissociável e inigualável. É por isso que “Odiosa Natureza Humana” não é só a obra-prima do Matanza, mas uma obra de arte em todos os sentidos. Aprecie sem moderação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário